Meu contato mais próximo com a morte aconteceu antes de meu pai falecer, quando se tornou paciente terminal, tomando remédios apenas para aliviar as dores, não havia mais o que fazer. Passei noites acordado ao seu lado, com ele alternando momentos de lucidez e de delírio provocado pelos medicamentos. A noite anterior ao seu falecimento não foi diferente, e ao amanhecer meu irmão me substituiu na vigília. Fui para minha casa e momentos depois o telefone tocou, avisando que ele havia descansado para sempre. Mesmo sabendo o que iria acontecer, aquelas noites foram de pedidos e orações pela sua melhora. Eu via e sabia o que estava acontecendo, mas não queria acreditar, e a esperança de um milagre nunca saiu da minha cabeça. Foi muito triste se despedir dele, mesmo sabendo que a morte aliviou seu sofrimento físico, que não era pequeno: respirava com extrema dificuldade e nas crises a única ajuda era acoplar a máscara de oxigênio que ficava ao lado de sua cama. O alívio durava pouco e a falta de ar voltava várias vezes. Nunca achei ruim cuidar dele, acreditei que era apenas uma mínima devolução da sua atenção, da educação e do seu imenso apoio. Quase nada, diante de tudo que ele dedicou a mim e aos meus irmãos. Meu pai é, até hoje, a pessoa que eu mais admiro, entre todos que conheci, e não apenas por ser meu pai. Minha admiração é maior ainda pela pessoa, pelo ser humano que ele era, pela sabedoria, pela serenidade com que encarava qualquer problema. E também devido ao seu arraigado sentimento de fraternidade e solidariedade em relação a todos e a cada um.
A morte é a única certeza que temos, desde o nascimento. E por mais que ela seja inevitável, os sentimentos que ela provoca, “quando chega a hora” nos mostram o imensurável valor da vida. Viver e sentir alegrias e tristezas, sofrimentos e momentos de grande prazer, vitórias e derrotas, encantos e desencantos, esperanças e frustrações, fé e decepções, é na verdade a nossa grande riqueza. Nada substitui, nem é maior, nem é mais gostoso do que estar vivo. Mas muitas vezes, muitíssimas vezes simplesmente nos esquecemos disso. Chegamos a xingar e maldizer a vida, quando ela nos oferece obstáculos, desafios, tristezas ou derrotas. Queremos uma vida apenas de coisas boas, agradáveis, prazerosas, confortáveis e felizes. Não aceitamos como parte natural de nossas vidas os sofrimentos, físicos ou mentais, os impedimentos, as limitações e proibições, da lei ou da natureza. Nos rebelamos e espalhamos ódio, rancor, cometemos graves injustiças, fazemos guerras, matamos vidas e cometemos as maiores barbaridades para fazer valer aquilo que achamos correto. Às vezes até usando o nome de Deus para participar, promover, admitir ou silenciar diante das maiores atrocidades que seres humanos, iguais a nós, cometem contra outros seres humanos, também iguais.
Com a Pandemia, voltamos a ouvir, muito, as eternas previsões de que o fim do mundo está se aproximando… E pode até ser que isso seja verdadeiro. Mas aqui com meus botões penso que tal “previsão” apenas serve para esconder a nossa covardia de humanos insensíveis, egoístas, ingratos e injustos com o divino sopro da vida. Ao pregar que “o fim do mundo já está aí” apenas tentamos, covardemente, transferir nossa culpa, individual e intransferível, para o abstrato e invisível conceito de “Humanidade”, ou da “Civilização Humana”…E quando as coisas nos apontam que a nossa morte como ser humano está se aproximando perigosamente, aí passamos a rezar e invocar a proteção e a piedade de Deus – que deveria estar conosco todos os dias, a cada segundo, sempre e não apenas nas horas difíceis. Tenho 66 anos e ultimamente tenho cada vez mais certeza de que o ser humano, a humanidade, a civilização humana – com toda a ciência, a tecnologia e as maravilhas que o conhecimento e a evolução nos propiciaram – não faz por merecer essa maravilha que chamamos de vida… E ela nos foi dada de graça, sem ninguém pedir, e nos custa apenas o trabalho para garantir nossa própria sobrevivência.
Valorizamos e até fazemos guerras por supérfluos, por falsos valores e pela hipocrisia de queremos nos considerar melhor que os outros – mesmo sabendo que somos todos iguais e estamos, literalmente, no mesmo barco. Queremos o poder! Impor as nossas verdades como as únicas e verdadeiras. Quem não concordar está errado, precisamos mostrar, exibir e ostentar nossa “superioridade” a todos os demais. A humildade é vista como uma atitude ultrapassada, assim como a fraternidade e a solidariedade. A sociedade do “Ter” há muito tempo matou a sociedade do “Ser”. Leis e privilégios são mercadorias ou ferramentas compradas pelo dinheiro – o verdadeiro Deus para muitos, ou para a maioria. A velha máxima – que ninguém gosta de encarar – de que “todo homem tem seu preço”, para mim é a prova definitiva de que a civilização humana é um retumbante fracasso. Estamos exterminando animais, devastando o ambiente natural, matando nossos semelhantes, ou deixando que morram de fome…estamos arrasando, poluindo e destruindo o planeta que nos foi dado totalmente de graça, limpo, perfeito e sem ódios, nem guerras, nem fome. Somos uns boçais!
Taí , “boçal”: Expressão que na minha juventude era um palavrão, capaz de provocar ‘vias de fato’. Hoje é quase um elogio, agora traduzido para quem cultua e capricha na “ostentação”. Agora vale tudo para tentar provar aos outros que somos “os melhores”…Entre católicos especialmente, mas não só entre eles, praticar a caridade, ajudar os outros, era um ato que sempre deveria ser mantido no anonimato, sem alarde ou divulgação alguma. Hoje temos – para citar um exemplo apenas – até programa de TV onde a maior atração do apresentador (cotado ser presidente do Brasil e com milhões de seguidores/fãs) é mostrar/ ostentar que ele ajuda pessoas e instituições, com dinheiro, obras e presentes. Sem dúvida sua ação ajuda muita gente e é benéfica, sim. Mas não dá para chamar isso de caridade: Ele tem, e muito, uma bela e garantida “remuneração” pela ajuda que presta. Não é caridade, não se está dando algo sem querer nada em troca. Não se está ajudando por amor ao próximo. Está se beneficiando pessoas em troca de benefício próprio, que vem na audiência, no faturamento do programa, e na popularidade do apresentador… Não é crítica ao Luciano e seu programa. É apenas uma clara constatação do que ‘rola’…Muitas vezes sem ninguém notar. Ou com muitos fingindo não notar!
Escrevi estas mal traçadas pensando numa letra da música de Caetano Veloso: “Podres Poderes”. Ela fala assim: “Enquanto os homens exercem Seus podres poderes / Motos e fuscas avançam Os sinais vermelhos /E perdem os verdes. Somos uns boçais / Queria querer gritar Setecentas mil vezes / Como são lindos Como são lindos os burgueses/ E os japoneses / Mas tudo é muito mais… Será que nunca faremos Senão confirmar/ A incompetência Da América católica / Que sempre precisará /De ridículos tiranos/ Será, será, que será? Que será, que será?/ Será que esta Minha estúpida retórica / Terá que soar Terá que se ouvir Por mais zil anos… Enquanto os homens exercem Seus podres poderes / Índios e padres e bichas Negros e mulheres E adolescentes/ Fazem o carnaval… Queria querer cantar Afinado com eles Silenciar em respeito Ao seu transe num êxtase /Ser indecente Mas tudo é muito mau… Ou então cada paisano E cada capataz / Com sua burrice fará Jorrar sangue demais / Nos pantanais, nas cidades Caatingas e nos gerais / Será que apenas Os hermetismos pascoais / E os tons, os mil tons Seus sons e seus dons geniais / Nos salvam, nos salvarão Dessas trevas e nada mais… Enquanto os homens exercem Seus podres poderes Morrer e matar de fome De raiva e de sede / São tantas vezes Gestos naturais…(….)”. Somos, sim, uns boçais!