Falar sobre nossas peripécias e espertezas, ostentar vitórias, grandes feitos e jogar confete no nosso ventilador são atitudes, às vezes justas, merecidas, que lustram o ego – o que também faz parte. Mas rir de nós mesmos, dizem alguns sábios, é muito bom para a saúde, combate caspa e unha encravada, entre outros males…Então, contar gloriosas pisadas no tomate, gols contra, tiros no pé, antológicas mancadas e outras versões do famoso fogo amigo, também acho que é justo. Afinal, a perfeição é uma meta defendida pelo goleiro, que joga na seleção. E eu não sou Pelé nem nada…
Posentão lembrei de uma pisada feia no tomate, daquelas de enterrar o pé na jaca, de minha modesta autoria. Foi a mais assistida pois ao final reuniu numerosa – e frustrada – plateia! Corria o nem tão glorioso ano de 1982, minha esposa e eu, ambos alunos da Faculdade de Comunicação/Jornalismo da UFSC e nossa filha mais velha, ainda de colo, morávamos num condomínio da Avenida Mauro Ramos, próximo de onde está hoje o Shopping Beira Mar, em Floripa. O condomínio deve ter uns 10 ou 12 edifícios, em três fileiras, e cada prédio com 12 apartamentos, à época completamente lotados. E misturava repúblicas de estudantes com casas de famílias. Era quase um bairro, e parecia mais um gueto.
Então aconteceu de eu ter que vir a Xanxerê, acho que para assinar algum documento ou algo parecido. Como era obrigatório na época, com inflação galopante e grana curta, viajei para o velho Oeste de “Wells & Fargo”, desdenhosa alcunha com que tratávamos a Reunidas, que não tinha ônibus, nem serviços, dignos desse nome. Eram diligências mesmo, paus velhos, ou latões que rumavam ao velho Oeste. Note-se que naqueles árduos tempos, pelo menos, já não havia mais ataques indígenas pelo caminho…Mas as diligências seguidamente quebravam durante a aventura, que durava rasas 12 horas de muito medo e sofrimento!
Trabalhando e estudando, minha viagem teve que ser bate e volta: Saí de Floripa na quinta à noite, cheguei na sexta pela manhã, e embarquei de volta na sexta à noite. No sábado cedinho a Wells Fargo me devolveu à Ilha da Magia em frangalhos, moído a pau e, como sempre xingando a empresa: Além de andar a trote de matungo velho e cansado pracarái, a diligência ainda entrava e parava numas cinco ou seis cidades para pegar caixas, pacotes e encomendas, que viajavam junto com os cowboys. Ou melhor, com os bravíssimos passageiros, mas, ainda bem, socadas lá nos bagageiros.
Assim, dormir, mesmo que fossem por alguns míseros minutos, era praticamente impossível, ao menos para mim. Mas cheguei no sábado pela manhã – para mim um espaço sagrado para conversar com os amigos da vizinhança, e tomar uns velhos barreiros com underbergues, entre uma rica fauna de frequentadores no Bar do Nelson e do Gentil, um “pé sujo” ali na Pracinha do Banco Redondo, pertinho de casa. Banho tomado, belo e formoso, fui pro boteco – que era famoso pela digamos, pouca higiene, e também pelos folclóricos frequentadores. Um deles era o Meyer Filho, talentoso, bom papo, e divertidíssimo pintor ilhéu, de galos multicoloridos, muito bonitos. Outro era o Nego Quidóca. morador do Morro do 25 e aposentado como funcionário do Avaí, vendia ingressos no estádio Adolfo Konder, que acabara de ser fechado para se construir o Shopping.
O dono do Bar não gostava quando algum de seus freguese assíduos pedia uma porção de “camarão de parede” ao alho e óleo: Os falsos crustáceos eram viçosas baratas, que nos brindavam com suas presenças, correndo pelas paredes, pelo chão, pelo balcão…mas ali a gente só bebia, nada de comer salgadinhos, nem camarão! Bar de esquina, certa vez o então Deputado Casildo Maldaner encostou o umbigo no balcão e mandou vir uma coxinha. Ao meu lado, o já falecido amigo Dagoberto Caon – um corrosivo e hilário observador dos fregueses – mandou de sem pulo: ”Tem certeza, deputado”? A plateia desabou, mas o Nelson com seu tradicional olhar 45 serviu o deputado, que saboreou o quitute sem dizer nada, e foi embora.
Mas voltando ao tomate, fiquei no bar até o meio dia, tomando as de sempre, nada mais, nada menos, e fui almoçar em casa, como de costume. E esse costume embutia, também, uma indispensável “dormidinha” após o almoço de sábado. Mais ainda naquele sábado, sacolejado e destroncado por duas noites seguidas a bordo de diligências. E antes de eu deitar minha esposa saiu com nossa filha no colo, sem chave de casa – algo que eu sempre pedia para ela não esquecer de levar! Eu tranquei a porta e desmaiei na cama, antes da uma da tarde.
A janela do quarto dava para o estacionamento, em frente, e para uma rampa com gramado, da fileira dos edifícios da terceira fila, a minha era a do meio. E eu nunca tive, graças a Deus, sono leve. Lá pelas quase cinco da tarde, minha companheira já cansada de bater na porta, tocar campainha, ligar do telefone da vizinha e jogar pedras pela janela e nos vidros fechados, começou a ficar preocupada: Eu sempre acordava com o telefone e também com a campainha…Deu algum problema nele, com certeza, deduziu ela, mais a vizinha e outros espectadores, esperando o pior…Minha filha já estava enrolada numa toalha da vizinha, pois as fraldas…já eram!
Depois de pedir ajuda e fazer todo o barulho que conseguiu, Dona Viviani fez o que lhe sugeriram: Chamou os bombeiros!!! “Vai ver que deu alguma coisa nele”! Os bravos bombeiros vieram rápido, com o maior caminhão que tinham, eu acho. E com aquela (bem) dita “escada Magirus”, o apê era no terceiro andar. Bom, resumindo: lembro que acordei com um braço fardado vindo de fora da janela, sacudiu meu ombro e pediu: “moço, moço, o senhor está bem? ” Sem me levantar respondi que sim, meio dormindo. Daí escutei a mesma voz dizer, em voz alta: “Tá tudo bem, ele só estava dormindo! ” E me avisou: “O senhor fechou sua esposa fora de casa, com sua filha”… E foi aí que fiz talvez a maior besteira: Ergui a cabeça para espiar pela janela…
Foi a maior das vaias que levei na vida, achei um exagero! A rampa de uns quatro metros estava superlotada com uns trocentos moradores, sentadinhos apertados e curiosos, esperando a pior notícia, como sempre. Até hoje escuto: ÚÚUUUUUUU!! Escondi a cara, sai da cama de cócoras, e assim fui até a sala, abrir a porta. Diante do alívio da mulher por eu estar bem, nem levei a merecida bronca, mas também nem precisava: A vaia me deixou meio metro menor, nunca tinha passado tamanha vergonha. A mulher deitava de rir… eu até ensaiei ficar bravo por ela ter chamado os bombeiros, mas achei melhor não…. Fiquei umas duas semanas saindo e entrando no prédio pela porta dos fundos e atravessei ruas várias vezes quando via vizinhos na minha direção. Mas no fim acabei rindo muito, nem tinha outra coisa a fazer…. Minha mulher depois disso jamais saiu sem levar a chave. E eu continuo dormindo nas tardes de sábado! Mas da vaia de arquibancada lotada, nunca mais vou esquecer! E até hoje xingo a Wells Fargo!…Tudo culpa dela, sem dúvidas!