De tanto ficar em casa, rádio, tevê e internet – as janelas para todos os mundos – ganharam importância maior que antes, mas não substituem aquela antes saudável e recomendável interação com os moradores da cidade pequena. Nela muita gente é conhecida e sair para dar uma volta implica em encontrar às vezes dezenas de xanxereenses, entre amigos, velhos conhecidos, parentes, ex-colegas de trabalho ou de escola, amigos novos e “figuras carimbadas”- personagens populares que são uma característica da cidade desde que me reconheço por gente. Dos tempos de calças curtas, início da década de 1960, lembro de alguns famosos, como a mulher indígena que todos chamavam de “Maria Louca”, deficiente mental que fazia desabaladas correrias nas ruas do centro, às vezes totalmente sem roupas, “anunciando” aos gritos a velocidade que imaginava estar desenvolvendo… Ainda bem que à época era pequeno volume de tráfego de veículos. Ela tinha algumas famílias que a acolhiam, ajudavam, inclusive vestindo-a, quando aparecia nua…Mas ela não foi a única…
Outro que lembro era o “Achuíche”, cujo nome também nunca descobri, igualmente portador de deficiência mental, e descendente de indígenas, que perambulava pelo centro, pedindo esmolas e comida nas casas e no comércio. E às vezes fazia pequenas tarefas, em troca de comida… De tempos em tempos sua saúde mental piorava, mas ele não chegava a ser um grande problema. Mesmo assim (acredito que) a prefeitura providenciava o internamento de Achuíche em hospital psiquiátrico em Florianópolis, provavelmente na Colônia Santana. Tempos depois ele aparecia de novo nas ruas de Xanxerê. Nos primeiros dias de seu retorno surgia bem vestido, de sapato, cabelo penteado, roupas limpas e em bom estado, era outro Achuíche….Dias depois estava de novo maltrapilho, pés descalços, falando coisas desconexas e pedindo balas ou um pastel, ou um dinheirinho. Era popular e muitos o ajudavam, embora crianças e adolescentes volta e meia o importunassem, “judiando” dele. Achuíche ainda tem entre os xanxereenses de hoje várias pessoas que lembram bem dele, com carinho. Pena que já tenha falecido.
A proximidade de Xanxerê com “a área indígena” – como era chamada a terra indígena hoje restrita aos municípios de Ipuaçu e Entre Rios – sempre atraiu para a cidade integrantes das etnias Kaingang e Guarani, seja para venderem seu artesanato, seja para pedir ajuda. Nessa época o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que depois virou na Funai, era muito precário. E era comum encontrar nas ruas indígenas em situação de extrema penúria, muitas vezes caídos na rua, embriagados. Não sei se é impressão minha, mas acredito que naqueles tempos eles eram apenas aturados na sociedade branca. Algumas pessoas ajudavam, mas a maioria, acredito, os ignorava. Isso na época era algo considerado como “normal”. Para situar aquela realidade nos dias atuais, temos que lembrar que a própria Igreja Católica associava toda assistência material aos indígenas à sua conversão ao catolicismo. Desde o Brasil colônia Índios “catequisados” eram bem aceitos e passavam a ser vistos como filhos de Deus, merecedores de caridade e de assistência. Os demais eram apenas selvagens, palavra depois amenizada para “silvícolas”
Já no início dos anos 2000 entrevistei a Missionária, não católica, alemã e médica, Doutora Gisela (pronuncia-se Guísela) aqui em Xanxerê. Ela veio da Alemanha juntamente com seu marido, o Pastor Kurt, e abriu uma missão para apoiar e socorrer indígenas que acabavam abandonados. Ou fugiam da área, às vezes escorraçados pelas próprias lideranças da tribo. Doutora Gísela foi dura, mas sincera: Muitos índios, adultos e crianças, eram encontrados mortos pelas ruas, de frio, ou por doenças, sem qualquer ajuda ou socorro.. Essa situação deve ser vista, hoje, no contexto daquela época: Era grande a precariedade dos serviços públicos de saúde, e prevalecia a visão preconceituosa que a sociedade daqueles anos fazia dos indígenas. “Eram muitas vezes tratados como animais, ou pior”, me disse a doutora. São reflexos dos tempos de desbravadores que vieram para a região atrás da extração dos vastos pinheirais existentes. Madeira cuja extração, vale frisar, alavancou o surgimento das cidades do Oeste, bem como impulsionou o “´progresso”, ou o desenvolvimento econômico de todo o grande Oeste.
A extração da madeira foi o primeiro ciclo econômico desenvolvido pelos colonos europeus “importados” pelo Governo do Brasil para colonizar o Sul. E para substituir a mão-de-obra gratuita, “perdida” com o fim da escravidão, a partir do final do Século XIX. Eram majoritariamente italianos e alemães e chegaram ao Oeste catarinense vindos do Rio Grande do Sul. A História real do grande Oeste um dia ainda será contada em cima do rigor dos fatos e com isenção. Hoje já existem registros mais ou menos isentos, pois escritos por descendentes diretos dos pioneiros. E muita gente ainda evita, ou pelo menos “não gosta desses assuntos”. Quero deixar bem claro que ninguém aqui está diminuindo, condenando ou difamando, nem a Igreja Católica, nem os pioneiros europeus que construíram o Oeste. Eles faziam o que era permitido e considerado necessário, ou imprescindível, para transformar o sertão daqueles tempos no lugar onde hoje vivemos e criamos nossos filhos. Os pioneiros fizeram o que estava ao seu alcance, do jeito que lhes foi permitido, com muito trabalho, mais uma grande e inegável bravura. Ao se analisar fatos do passado sempre é fundamental contextualizar esses fatos na realidade que prevalecia naqueles anos. Repito: Não menosprezo, nem critico, nem condeno, nem personagens, nem os fatos que aconteceram, mesmo os mais tristes, violentos e injustos, aos olhos de quem vive atualmente.
Abordei aqui essa via crucis dos indígenas para dizer que se naqueles tempos essa era a realidade nua e crua, hoje em dia não podemos mais achar, muito menos aceitar, que qualquer comportamento ou política, governamental ou não, parecida com o que se fez antigamente seja justificável e muito menos cabível nos dias de hoje. Atualmente, os povos nativos ainda existentes em todo o mundo são respeitados e preservados em suas culturas, por mais que essas culturas pareçam atrasadas, inúteis ou economicamente inviáveis para alguns. Basta, como argumento, lembrar que a “nossa cultura” – o capitalismo – anda bem mal das pernas, decadente, e incapaz de corrigir injustiças ou absurdos como as guerras e a fome, que matam milhares e assolam o planeta. Há séculos! Hoje, preservar povos nativos não é apenas um sinal da evolução humana. É um claro sinal de inteligência humana! É um crime e uma imensa burrice exterminá-los! O conhecimento acumulado por indígenas ou nativos por milhares de anos – sem registros escritos – hoje são verdadeiros tesouros. Muito da ciência e da medicina hoje disponível vem destes conhecimentos. E muito ainda pode e vai ser descoberto. Além disso, o Brasil tem terras suficientes e até sobrando para crescer e expandir sua economia, sem continuar a espoliar, assaltar e assassinar povos indígenas. E espoliar os recursos naturais que mantém sua sobrevivência de maneira digna. Chega. É preciso respeitar e fortalecer sua cultura!
Um bom fim de semana a todos(as)!