Mês de julho era bom porque tinha férias no colégio, daí meu padrinho e tio Arnaldo vinha buscar em Xanxerê o seu filho Adroaldo, que morava lá em casa para fazer o ginásio no La Salle. E levava nós dois para a Linha Forquilha (ou “o Forquilha”), interior de Vitorino, onde ele morava e tinha uma serraria a 11 quilômetros de Pato Branco, e que para mim, com sete/oito anos, ficava bem no meio do mato. Estrada de chão daqui até lá, se chovesse Tio Arnaldo calçava os pneus da caminhoneta C-10 com correntes, para não atolar, na viagem de três horas. Na Forquilha a vida era calçar um par de botas, usar chapéu para não levar bronca da Madrinha Tia Diva e ir caçar passarinho, de bodoque que a gente mesmo fazia. Confesso hoje que eu não era “seco” na pontaria e o melhor das caçadas era andar pela invernada, ou nas capoeiras que rodeavam a serraria, junto com meu outro primo, Adriano. No verão, de dezembro a fevereiro eu estava por lá também, dos oito aos 14 anos. E nunca queria voltar…
Volta e meia tínhamos tarefas baixadas pela tia e uma delas era sair com uma cesta de vime para encontrar e catar ovos de galinha, que durante o dia ficavam soltas no entorno da Serraria e das casas dos empregados. Quase sempre a gente voltava com a cesta cheia de ovos e o prêmio era um lanche com pão (de forno a lenha feito pela Alzira) e gemada de ovos “com casca azul” – que eu achava misteriosos, e especiais. Como era costume de italianos ‘oriundi’, Alzira foi criada pelos tios, morava junto e era da família. Falava metade em português e a outra metade em italiano, com ela aprendi os primeiros palavrões, os “pórcos” – que a piazada era proibida de falar, mas falava. Alzira era muito engraçada no seu jeitão autêntico, falava muito e se Tia Diva “não se espichasse” ela mandava na tribo toda, que incluía também outro tio e sócio da Serraria, Tio Jovino, solteiro e irmão da Tia Diva. Ele tinha um quarto só para ele e suas espingardas penduradas na parede, munições e petrechos para carregar cartuchos de caça – outra atividade que a gente ajudava, mas só até aí. O espaço, cheio de armas, era proibido para a piazada. O quarto parecia uma sala de armas!
A serraria tinha umas dez famílias de empregados, que moravam cada uma na sua casa e tinham filhos da nossa idade, companheiros de caçadas, de pescarias e banhos de cascata do riacho que cortava a invernada. A forquilha era de alta tecnologia: Uma roda d´água montada pelo tio Arnaldo – um exímio mecânico e construtor autodidata – gerava através de um dínamo energia que acendia lâmpadas em todas as casas e ligava o rádio, à noite até as dez horas. Mais ou menos nesse horário Tio Arnaldo ia até a área da casa e soltava um arame que estava preso a um prego no chão do corrimão. Com isso a água parava de cair na roda, o dínamo parava e a Forquilha inteira mergulhava na escuridão, mas sobravam vaga-lumes. Ao lado da roda d’água um “barbaquá” – engenho de torrar e socar erva-mate – garantia um chimarrão e primeiríssima qualidade.
Meus tios vieram do ‘Rio Grande amado’ atrás da madeira farta dos pinheiros, embuias, cedros e outros que abundavam, no sudoeste do Paraná e aqui no Oeste catarina. A casa tinha um porão, com um imenso tanque onde a água de fonte corria, por gravidade, dia e noite. O porão era equipado por churrasqueira e uma sala grande de chão batido, onde ficavam enormes barris de vinho e cachaça, e a garagem de um legítimo e bem conservado Ford-29, xodó do Tio Arnaldo – um apaixonado por veículos de todos os tipos. Uma vez ele e seu mecânico aprendiz, o Itacir, tirou o motor de um caminhão Mercedez Benz e o colocou num Ford F-8, puxador de toras. Aquilo me deixou abismado e seu fã, para sempre! Na frente da casa ficava uma enorme garagem, que também servia como oficina. Ali eram feitos os consertos de caminhões e tratores sob a batuta do Tio e do Itacir. Mas a garagem era um lugar meio proibido para nós, a “piazada”. Ali se trabalhava, direto.
Como era costume, nos domingos de manhã, após ir e voltar da missa em Vitorino a bordo de um reluzente Chevrolet 56, era a hora de preparar o churrasco. Num desses domingos, Adriano e eu fomos encarregados de tirar pinga do barril, para fazer a caipirinha. O barril estava cheio, não tinha ainda a torneirinha, o jeito foi enfiar uma mangueira pela abertura que era fechada com tarugo e sugar, até a pinga sair na outra ponta da mangueira, no gargalo do garrafão. Sucede que meu primo Adriano era “ladino” e ficou bebendo a pinga no bico da mangueira. Parava, e me dizia que a cachaça não estava saindo. Fez isso umas duas ou três vezes e eu logo vi sua “arte”…. Daí a pouco, depois de algumas gargalhadas que a Tia Diva achou estranhas meu primo começou a vomitar. O porre foi curado com chás e (acho que) com éter que Tia Diva colocou numa gaze e colocou perto do nariz do Adriano, fazendo ele acordar da bebedeira.
Depois daquela, tirar cachaça do barril passou a ser minha tarefa, com a recomendação: É para tirar, não é para beber! Também no porão uma porta dava para um pátio quadrado, com um portão que abria para o espaço do galinheiro e outro para a horta, tudo cercado com ripas de madeira da serraria. No quadrado ficava o “Negrão”, um pointer lindo, de pelagem toda negra, puro sangue, especialista em “amarrar” e buscar codornas e perdigões que meus tios Arnaldo e Jovino adoravam caçar (e que rendiam deliciosas “polenta com perdiz”). Forte e grande, Negrão conseguia levar na garupa Adriano e eu, ambos miúdos e magrinhos. Era uma festa andar a cavalo de Negrão! Negrão era também um fiel guardião do galinheiro ao lado, às vezes almejado por raposas e outros bichos. Seu potente latido acordava não apenas nós todos como várias famílias de empregados moradores ali perto, mas ninguém reclamava, Negrão era uma personalidade muito estimada por todos, acho que foi o cão mais inteligente que conheci, e o primeiro que “só faltava falar”.
As férias na Linha Forquilha fazem parte da minha história. Até hoje meu sonho é morar num lugar parecido com aquele, no meio do mato. Óbvio que hoje não precisaria mais de serrarias, nem de armas de caça ou de caçar passarinhos. Mas ir junto com os caminhões buscar toras no mato e trazer para a serraria, ou acompanhar o carregamento de porcos no chiqueirão – a Forquilha também engordava e vendia porcos “duroques”, tinha criação e cabritos, pomar de laranjas e de uva. E a grande invernada cuja extensão até hoje me assusta: Diziam para nós que para dar a volta em toda a cerca de arame farpado a procura de buracos de fuga das vacas de leite, demorava um dia inteiro! Acho que era para nos assustar e evitar que fossemos literalmente para o mato, fechado e com perigo de cobras. Quando íamos um pouco mais longe, era somente junto com os tios e o Negrão, também um cão de guarda muito competente.
Estive “no Forquilha”(como dizíamos) algum tempo atrás, mas não o encontrei mais. Não do jeito que era. Não tem mais serraria, nem porão, nem barbaquá, nem casa com porão e barris de vinho e de pinga, nem Ford 29, nem tios, tia, nem Alzira, nem o Negrão… E nem uma geladeira movida a querosene e dos trilhos entre o depósito de madeira da serraria, onde tirávamos resina das pilhas de tábuas, que eu tinha esquecido de falar. Mas na minha memória estão todos bem vivos, felizes e operantes. Até escuto o latido do Negrão e o barulho do fio da roda d’água sendo solto pelo Tio Arnaldo, para apagar a luz de todo o mundo no Forquilha! E lá ainda está o meu primo mais querido, o Adroaldo, testemunho de tudo isso e de muito mais! Onde eu andei, ando e onde andarei levo o Forquilha comigo. E quando canso da “cidade grande” fujo para lá, boto o chapéu, calço as botas, penduro o bodoque no pescoço, encho o bolso de pedras e vou caçar na invernada, que levava um dia para percorrer toda a cerca…