Numa sexta feira dessas, depois de semana chuvosa, acordei com um sabiá cantando, no camboatã dos fundos, é dos deuses! Vesti calção, tênis, e saí da barraca logo depois do amanhecer. Primeira coisa foi jogar uns gravetos na brasa de ontem, fazer fumaça pra defumar tudo, e acender o fogo. Depois lambuzei a escova com a pasta, peguei um copo d’água, pra escovar os dentes naquela pedra que tem ali, na corredeira, quase no meio do rio. Daí deixei a escova na pedra e me espichei na corredeira, com essa chuva toda a água nem tá muito fria, só um pouco. O suficiente para acordar de vez e botar o sangue pra circular! Nunca me considerei um Tarzan, mas se pudesse me mudava pro meio do mato e ficava por lá mesmo!
No acampamento o de Moraes tá descascando mamão, de lei, no seu obrigatório, tradicional e mui rico café… Enquanto isso o da Julia enche a térmica com água quente, do fogareiro, de cuia pronta, e senta na sua cadeira de praia, ao lado do Marculino – que tem bunda pesada, já sentou e espera a vez do mate. Os outros ainda não acordaram, foram dormir mais tarde, só no vinho e no violão do Mauro, e do Zé, revezando com o Nico, e acompanhados do afinadíssimo Cesinha, bom de gogó e das antigas do Robertão. Às vezes, pela manhã, alguém acorda “lembrando” daquelas garrafas de cerveja ou de vinho de ontem à noite. Mas tudo tem remédio: Uma consulta ao Jorginho, recém acordado, com sua inseparável pasta de doutor resolve tudo! A turma não é dos fracos! Uma das marcas dessas aventuras, sempre, é nunca faltar nada!
O de Abdon sempre precisa dormir mais um pouco – ele tem medo de escuro, e na alta madrugada, pra ir mijar no mato, precisou achar a lanterna que extraviou na bagunça da sua barraca. O Moa e o Cabeção de Água Doce também levantaram cedo e foram conferir, junto com o da Costa, comandante do barco, umas esperas armadas no fim da tarde, pra “tentiar” traíras e jundiás. Hoje temos que pegar um peixinho, pra fazer um frito, na janta! Também tem a tarefa de abastecer e fazer a manutenção do isopor da cerveja, que é abastecido com gelo guardado em outro isopor, junto com as carnes e outros perecíveis. A cidade tem um (flexível) plano diretor e código de posturas! Senão vira zona…
O cardápio desta sexta agendou aipim e costelinha de porco frita no disco, na banha da carne, mais molho temperado ali mesmo com cebola, alho, tempero verde, uma pitada de canela em pó e osmarim – se o Cabeção, pão duro, não cortou da lista, no rancho que fez – tarefa exclusiva dele. É o “mais econômico”, por isso faz as compras, não sem algumas controvérsias…. Só falhou uma vez, no rancho: Comprou rigorosamente (e, claro, pelo menor preço!) todos os pertences e temperos da feijoada. Só esqueceu do feijão…. Tivemos que ir até a bodega mais próxima, uns 15 quilômetros na estrada de chão. Mas a feijoada ficou do tipo, e anistiamos o do rancho!
A confraria é uma família e, tal qual, não podem faltar alguns ti-ti-tis e arranca-rabos, por questões domésticas ou manias mesmo, a maioria resolvida democraticamente: Os que tem sono pesado e roncam em estéreo armam suas barracas no subúrbio, lá no meio do mato fora do acampamento – uma cidade com cinco ou seis barracas, mais os que preferem dormir dentro do carro. O centro “da cidade”, próximo do fogo e da cozinha – taticamente coberta com lona de carreta – é área privativa dos acordam mais cedo, zona residencial! Mas fica próxima ao polo gastronômico e de lazer, com mesa de canastra e dominó. O código de ocupação urbana incorpora um gerador a diesel, instalado a uns vinte metros do acampamento, pro barulho não atrapalhar, mas iluminar a canastra. E nesta edição, um luxo a mais: Bomba de água que o Moa descobriu em Sampa e comprou, abastecida pelo rio e movida a bateria – que o De Moraes cuida guarda em casa, no Kit Acampamento – está instalada. E com pia montada numa prancha velha, entre duas árvores, vamos lavar a louça com água quente! Chic no úrtimo!
Marculino, de chimarrão tomado e machado na mão, grita lá, o de sempre: “Xaréia, vamo pro mato buscar lenha! Que ontem de noite o Nico, aquela imundície, como sempre, queimou tudo que recolhemos. Vamo! Levanta dessa cadeira”! Respondo, com famosa sacada, antiga, dos tempos da Fazenda Clarimunda, que parou no ar o martelo de um carpinteiro: “ Vamo! Mas tu pegou a camisinha, amor”? E fomos pro mato, buscar lenha, rindo dessa e de outras inesquecíveis passagens, de cinema. Recapitular hilárias e imortais cenas – protagonizadas por todos os integrantes do talentoso elenco – é a melhor pauta das rodas de papo, “depois da janta” ao redor do fogo. É de chorar de rir, e de ressuscitar algumas eternas polêmicas. Se fosse filmado – o que é proibido terminantemente – dava de dez a zero nos ridículos Big Brothers da vida…
A escalação dos participantes para cada “epetáculo” destes é como escolher o elenco de uma peça teatral. E nestas linhas aqui nem cabem todos… Temos, modéstia a parte, ótimos artistas, talentosos atores, impagáveis amigos, com incontáveis performances… Uns com pequenas diferenças, acumuladas em décadas de convívio e frutos, muitas vezes, de intermináveis, agudas mas passageiras e líquidas, desavenças etílicas! Daí, se o clima ameaça esquentar alguém sugere uma exploração da margem do rio, ou um safari ecológico pelo mato. E a única arma permitida, com registro e porte, são facões, itens do Kit Camping que o De Moraes cuida, cobra e guarda como ninguém. A refeição sempre tem um ou dois palpiteiros a assessorar e azucrinar o cozinheiro titular, definido ainda na formatação do cardápio. A cidade tem um planejamento bagual, melhor que o da prefeitura! E o Cabeção de Água Doce geralmente é eleito prefeito!
A cláusula pétrea do acampamento é o Código Ambiental: Bolsas de ráfia penduradas estrategicamente em árvores da ”cidade” coletam todo tipo de lixo descartável, plásticos, latas, vidros e embalagens vazias, que depois é levado de volta pra Xanxerê, pra correta destinação. Não fica um toco de cigarro no chão, nem qualquer sinal de humanos por ali, isso é de lei! A pescaria mesmo é apenas um dos itens das opções lazer, entre tomar banho de rio ou de cascata, andar de barco, caminhar no mato, buscar lenha…Ou sentar na cadeira só pra tomar uma bem gelada! E lavar a louça, embora cada um seja responsável por seu prato, copo e talheres. Nesta sexta-feira pra lavar panelas, com água quente, quase deu fila: Vários querendo inaugurar bomba, comprada pelo Moa. Outra que ele traz pro acampamento é a padaria, muito útil quando dura mais que um fim de semana: Um forno elétrico pra fazer pão, porque ninguém quer ir botar o pé em outra cidade…
Quando a noite chega é hora da janta – esses “epetáculos” incorporam farta gastronomia, e não se cogita na possibilidade de ganhar algumas gramas – ou quilos, vá lá. E isso não é assunto pra essas horas! Mesmo cansados – andar no mato é um baita exercício – são raros os que resolvem dormir cedo; Porque tem violão, canastra e dominó, a escolher. Ou simplesmente sentar do lado do fogo, tacar lenha nele e ficar revivendo episódios da delícia que é viver no meio do mato, sem celular, TV, rádio, mulher e filhos, sem trânsito e, especialmente sem relógio! Pena que essas epopeias aconteceram há tempos. Daí que nesta sexta-feira (05/02/2021), mesmo com tornozelo quebrado e andando de muleta pela casa, de bota ortopédica, e cansado de xingar o bostonaro, não me aguentei: Mandei tudo praquelelugar e fui pro mato mesmo assim, acampar com essa turma de “veteranos”, digamos! Uns divertidos e adoráveis malucos, mas estimados grandes amigos! E foi um ótimo programa! Incluindo, in memoriam, lembrança de nosso amigo de Abdon, o Edilson, que já partiu… Que Deus os conserve assim, por muitos e muitos anos!
Um bom fim de semana a todos (as)!