Esse ano vai render muito o que contar, pelos medos novos que trouxe e por novos velhos hábitos colocados em prática, não previstos nem imagináveis. Acostumei a andar de máscara e a trocar de calçado ao entrar em casa, mas ainda não consigo deixar de apertar a mão de amigos que há tempos não encontrava. Também ainda não incorporei totalmente uma desejável e saudável indiferença aos que negam a ciência. E aos teimam em saber tudo sobre assuntos que sabem quase nada. Já acredito que é melhor deixar a ignorância e seus fiéis adeptos a seguirem seus caminhos “de boa”, mas alguns excessos ainda me provocam reações de intolerância e rejeição, quando os disparates são mais que inaceitáveis, são inacreditáveis. Mas reais.
Aqui do alto de meu subdesenvolvimento jamais imaginei que, em 2020, o presidente do país mais poderoso e rico do planeta cogitasse em não passar o cargo, caso perca a eleição. Esse tipo de pensamento foi comum nas preconceituosamente taxadas de republiquetas das bananas, localizadas nas Américas central e do Sul. Mas hoje nem nelas tal arrogância e autoritarismo se criam mais. Este ano terrível parece estar desafiando a Humanidade a confrontar alguns dos seus notáveis avanços com práticas da era das cavernas, que deveriam estar extintas. O mundo ficou incrivelmente pequeno e, penso que talvez por isso, começamos a ter informações e conhecimento de práticas e pensamentos surpreendentes. E retrógrados!
A violência em todos os níveis e a fria aceitação de que a barbárie se incorporou aos acontecimentos cotidianos, sem que isso nos cause qualquer resquício de culpa, são novidades de 2020 que fazem o mundo parecer lá com o mundo que descobriu a máquina a vapor, ou a televisão, o telefone. Descobrimos a cada dia que o uso da violência apesar de condenado por lei e por religiões, pela sociedade e pelos costumes, está incrivelmente incorporada entre os hábitos sociais, com inacreditável naturalidade. E outro hábito escandalosamente fora-da-lei e longe do chamado senso comum – o direito de fazer justiça com as próprias mãos – está na moda!
Não fiz pesquisas, nem busquei informações qualificadas e fidedignas sobre, mas acredito que o sentimento chamado fraternidade deve ter se transformado numa espécie volátil de mico-leão-dourado, na lista de animais em extinção. A maioria “não está nem aí” com o que acontece ao vizinho… O empoderamento que todos, ou muitos, ou a maioria, sentem, confere a qualquer um que se ache o direito de xingar, insultar e maldizer quem contrarie, por exemplo, a recomendação de não participar, nem estimular aglomerações. No começo da Pandemia choveram certezas saudando “o novo normal”, as mudanças que ela traria e a necessária adaptação aos novos tempos, difíceis e novos, mas imprescindíveis. E positivos…
Passados aí uns oito meses já não tenho tanta certeza quanto ao afamado “novo normal”. Pelo menos aquele novo normal que foi inicialmente previsto, indicando, com otimismo, que a Covid 19 elevaria o nível de sabedoria e de autopreservação da raça humana, na sociedade atual e no planeta atual. Gente – cada vez mais gente – negando-se a acreditar em vacinas e levantando suspeitas e teorias sem-pé-nem cabeça sobre conspirações para matar milhões de seres humanos com um vírus que teria sido fabricado na China, propositalmente, não é algo que se possa considerar, ou engolir, como sinal da evolução humana e do “novo normal”. Ao contrário, começo a suspeitar que o novo normal na verdade é “velho atraso”, de roupa nova!
Os jovens estão nem aí se os mais velhos podem e estão morrendo por falta de medidas preventivas que eles, muitos deles, jovens, se negam a trocar por uma noite de balada ou um porre coletivo no final-de-semana, por exemplo. O sentimento de que estamos todos no mesmo barco é outro bicho em extinção. Egoísmo e “se achismo” são mutações de vírus, ao que parece potencializados pelo Corona Vírus 19, que se disseminaram mundo afora conduzidos não pelo ar que respiramos, mas pelos próprios seres ditos humanos. Penso, também, que esse cada um por si e Deus por todos pode lá ser, talvez, alguma moderna ferramenta para reduzir a população mundial, e salvar a vida no planeta. Com menos gente por aqui, os recursos que ainda restam no Planeta Terra seriam melhor usufruídos, pelos que conseguirem sobreviver…
Às vezes chego a acreditar que nesse ano da praga de 2020 desaprendi mais que aprendi. Ou que aprendi coisas que não sabia, mas preferiria que não existissem, mas existem. E são assustadoras. Sou contrário, cético, à eterna neurose de que o mundo vai acabar. Mas comecei a admitir a possibilidade de o bicho Homem ter intensificado, turbinado a velha ideia de destruir a si mesmo, começando por destruir as bases da sociedade que o manteve vivo aqui na Terra, até agora. Outra impressão de 2020 é a de que a Humanidade, a vida aqui no Planeta Terra, a tal convivência harmoniosa, deixou de ser um ideal a ser alcançado e passou para a pasta de “utopias”. Não se vê mais falar nisso, e muito menos da tal paz mundial.
Liberdade, igualdade, fraternidade, o lema da Revolução Francesa, há mais de 200 anos atrás, simboliza a luta que marcou a história e que determinou as diretrizes do que hoje entendemos por Justiça e Democracia. O lema e também essas conquistas – Justiça e Democracia, acredito, nunca estiveram tão ameaçadas, em todo o planeta. A força da grana, do dinheiro, mais que nunca, anda a mil por hora para se tornar não só o novo lema da Humanidade, mas também o seu maior ideal, desbancando velharias com Justiça e Democracia. Talvez o novo lema dessa revolução mundial, em gestação, seja manda quem pode, obedece quem tem juízo!
Mas, para não me chamarem de pessimista ou de velho azedo, ainda nos restam dois meses deste imprevisível 2020 – também conhecido já, como “vinte ponto vinte”. E como o ano foi cheio de (péssimas) surpresas, não custa também rezar, torcer, prever ou bater na madeira e pedir alguma boa notícia. Mesmo sabendo que Papai Noel não existe – e que a terra é mesmo, redonda! Nem peço muita coisa não: A vacina disponível e eficaz já bastaria! Talvez – e vamos exagerar no otimismo – a vacina além de nos livrar da Covid inocule em nossa gente um pouco de Fraternidade e de Solidariedade. E a gente inicie uma nova revolução francesa, agora contra a ignorância, a mesquinhez e o poder do dinheiro!