Fazer essa Quirera de segunda a sexta há dez meses ainda não me deixa com a roupa, olhos, nariz e “zoreias” brancos do pó que saía da pedra de moer o milho. Mas às vezes consigo me sentir um “munheiro” daqueles antigos, igual ao do Vivan, até hoje ali perto da rodoviária, na Campina da Cascavel. Lembro que ia até lá com o milho que virava quirera para alimentar galinhas, pintinhos, perus e os passarinhos do viveiro – canários, principalmente, que a gente pegava em arapucas, também com quirera. O pátio lá de casa era quase um zoológico de animais domésticos. Tinha pomba, galinha, peru, porquinho-da-índia cães, gatos, e volta e meia uma paca “na engorda”, alojada numa gaiola para criar coelhos – empreendimento que meus irmãos e eu choramos muito a perda, depois de um ataque devastador dos cachorros – os nossos mesmo.
Também tinha periquitos australianos – as “caturritas”, papagaio, canário belga… Tudo junto e no mesmo terreno com pés de pera, caqui, ameixas, maçãs, pêssegos, romãs, moranguinhos, ao lado de um vasto parreiral de uvas brancas, pretas, rose, de variedades para comer, para fazer geléia e vinho doce. Para moer a uva e colocar no barril tinha o porão, onde a gente também fazia salame, copa, torresmo e um churrasquinho na brasa do tacho que fazia uma lata de banha, quando “carneava” um porco. A matança do porco era um dia de festa, começava cedinho, com a chegada do “butchi”, vivinho da silva – que seu Casanova abatia com extrema maestria – e terminava já escuro, quando a mãe deixava uns tições em brasa, para “fumacear” os salames pendurados no teto do porão.
Fazer essa Quirera Gourmet – pode nem parecer isso (era segredo) – me leva de volta, também, para aquele quintal maravilhoso, com zoológico e fruteira, e para meia bolsa de milho amarrada na garupa da bicicleta Caloi, levada até o “munheiro”. Um avanço significativo foi quando apareceram os pintinhos “de granja”, que passaram a ser criados, com quirera e ração, num cercado de tela com acesso ao galinheiro. Debaixo do galinheiro ficava a casa do meu cachorro predileto, o “Brisa”, filho da Rolinha, da raça Fox, que meu pai trouxe de Porto Alegre. Brisa não era um bom cão de guarda, mas era muito inteligente, e passeador. Numa dessas ele foi para a balada e deve ter bebido demais. Na volta, de madrugada, invadiu o galinheiro e matou umas seis ou sete galinhas “poedeiras” da Dona Alice. O crime custou seu degredo: Brisa foi expulso do paraíso e doado para um agricultor, de Abelardo Luz. Foi muito triste….
Moer todo esse milho nosso de cada dia, armazenado desde muitas safras atrás, ainda é o propósito maior e o foco dessa Quirera Gourmet. Com mais anos já vividos do que ainda a viver, é hora de começar a remexer no baú de ossos, ou no paiol de milho, e produzir Quirera – que agora também virou comida de gente pobre e rica, um prato delicioso, especialmente se misturada a costelinhas de porco, temperadas com osmarin, alho e uma pitada de canela em pó. Porém – e sempre tem um porém – os bizarros e inacreditáveis acontecimentos políticos e policiais desse Brasil verde e amarelo – bem mais para o amarelo, igual a quirera, me levam a esquecer o quintal, o parreiral, os passarinhos, o Brisa e a quirera do “munheiro”. E se ainda não fico branco com a pó da Quirera, volta e meia aqueles tempos de ouro, tipo a quirera, dominam o Tico e o Teco e mandam notícias para a Coluna…
O Xanxerê daquelas quireras era bem menos politicamente correto que a atual “Capital do milho”, “Cidade do Coração” ou da “Campina da Cascavel”. Era a assustadora e temida “Capital do gatilho”, que depois eu rebaixei para “terra de Moça bunita e rapaiz valente”, quando foi deportado para Curitiba, estudar, lá em 1969. Não me queixo do hoje, mas os nossos tempos de infância e juventude – de todos nós, eu acho – sempre serão melhores que os dias atuais…. Uns dizem que perdemos o romantismo e a magia, e que não temos mais aqueles grandes mistérios a nos instigar a imaginação. Mas também não há mais aquele medo do futuro, se a gente chegasse no futuro, nem as incertezas e dúvidas sobre o que a vida nos reservaria “lá pelo ano 2000”…Isso já dava medo, pois tinha-se como quase certo que o mundo acabaria no ano 2000.
Hoje, talvez mais que nunca, precisamos “não perder a ternura, jamais”, nem deixar morrer o piá que nos habitou, nem mesmo aquele triste guri, chorando porque o Brisa matou a criação de coelhos inteira! Xanxerê, sem apelidos, nem título de orgulho ou de ironia é, e tomara que continue assim, um lugar onde sempre gostei muito, para morar, para viver e se for possível até para morrer. A cidade e sua gente, ouso dizer, tem nada assim muito especial, algo que transforme esse lugar “numa Brastemp”. Mas quem gosta daqui sabe do que estou falando. Se não temos maiúsculos predicados, também não somos tragédia alguma. Tem muita gente boa, a maioria, embora também tenhamos uns “nem tanto” (fala sério!), igual a todos os lugares. Eu acredito que esse gostar tem muito a ver com as raízes que, queiramos ou não, sempre acabamos criando. Esse gostar tem a ver com moer quirera no “munheiro”, com um pé de ameixa carregado de frutas, para passar a tarde trepado nele, depois de ver um bang-bang no Cine Luz, lendo gibis da Ebal, que a gente trocava com amigos na entrada do cinema.
Gosto muito de moer essas Quireras diárias. E espero não estar chateando (muito) vocês, leitoras e leitores, que adotaram o hábito de gastar uns minutos por aqui, nestas mal traçadas e quirereiras linhas. Pena que muito “milho” daqueles tempos ande tão escondido no fundo do baú, ou do paiol, que às vezes não consigo mais localizá-lo. Mesmo assim, volta e meia algum aparece. E com um trato de “munheiro” – daqueles mesmos, dos tempos de quintais com criação e galinhas, perus, passarinhos, cães e gatos, coelhos, porquinhos da índia, papagaios e caturritas, matança de porco e vinho doce – a gente ainda consegue produzir alguma Quirera. E é especialmente bom porque a gente esquece, por instantes ao menos, desse ano de 2020 e a inédita neurose que ele trouxe a todos nós. Mas isso vai passar! E poderemos continuar, se Deus quiser, fazendo Quirera por bons tempos!