Foi na manhã de 15 de agosto de 1965, eu na aula de ciências com o Irmão Alóis, na primeira série do ginásio do Colégio La Salle, inaugurado naquele ano lá em cima do morro, substituindo o antigo casarão, de madeira, onde hoje está o Centro comunitário da Igreja Senhor Bom Jesus. Na sala da “primeira série do ginásio”, todos – uns 30, de meias de lã, certamente cuecão por baixo da calça – de tergal ou de brim (porque de jeans, só o muito caro “Brim Coringa”), casacão de lã, mais luva de tricô que a mãe fez, ou de couro para quem tinha condições, e gorro de lã, para esquentar as orelhas! Era a terceira das quatro aulas, lá pelas 10 da manhã. Um frio de rachar, ou nevar, e nevou!
Naqueles encasacados dias, São Joaquim e Urubici eram totalmente desconhecidos, ao menos para nós, os de 11 anos. E ninguém “pegava televisão” na então “capital do gatilho”! Também não tinha ainda a “Rádia Princesa” nem, muitíssimo menos, internet! Também falar em “ver a neve” não era moda, ainda. Eram invernos muito frios, mas não dava neve, eram dias seguidos de geadas, das grossas! Nas salas de aula nos dias mais frios e nas turmas de alunos menores era comum correr entre eles, um por um, uma garrafa de água quente, para não deixar congelar as mãos. Ficava um pouco com cada um, circulando até esfriar. Outra providência eram bolsas de água quente – aquelas que os mais velhos colocavam na cama da nona, à noite, para esquentar a cama, e os pés! O inverno era uma estação bem definida.
Nesse cenário de frio o “eletrodoméstico” obrigatório nas casas xanxereenses (da classe média para mais) era o fogão…a lenha! E nas famílias conhecidas – que eram quase todos os moradores do centro (porque nem tinha bairro) – eram comuns amigos visitantes diários, um ou mais xanxereenses geralmente indígenas, moradores de malocas, ranchos feitos de “costaneiras”, sobras de madeira, com chão batido, nos arredores da cidade. Eles, principalmente no inverno recebiam cobertores e alimento. Ninguém fazia “Campanha de agasalho”, mas era tradição ajudar o povo mais pobre.
Durante todo o ano alguns deles – bem conhecidos na pequena cidade, uma ou mais vezes por semana acorriam às casas dos amigos, se oferecendo para varrer o pátio, rachar lenha, capinar ou fazer alguma tarefa braçal, em troca de comida, de roupas, calçados, e às vezes sendo pagos com grana mesmo. Eram poucos, e conhecidos de várias famílias – talvez porque alternassem suas visitas às casas, trabalhando um dia em cada uma. Lá em casa a ajudante da dona Alice na limpeza do pátio, cheio de árvores e plantas frutíferas, que tapavam o chão de folhas, era a Dona Benta, entre outras. Ela era uma idosa e simpática indígena Guarani, oriundas da “área Indígena”, ainda pertencente a Xanxerê.
Era a “Bentinha”, como nós, “a piazada”, a chamávamos – e ela gostava, sorria, enrugava o rosto liso e mostrava sua dentadura desfalcada. Bentinha, tinha dias de bom e de mau humor. E Dona Alice reconhecia o astral diário só com uma olhadinha para ela. Com bom humor ela até pedia pra “Siálice” se precisava “barrer” as folhas do chão. E tinha até guardada num cantinho, com cuidado, a sua “bassora” – feita com ramos de capoeiras atados com tira de pano, prática e barata, para o trabalho no pátio. Nos dias de mau humor Dona Benta sentava na cadeirinha ao lado da porta da cozinha, quieta e de cara emburrada! E aguardava sair o almoço, não trabalhava…. Não gostava, nunca aceitou, sentar à mesa com a família, embora fosse convidada. Comia com o prato no colo, sentada na cadeira. Bentinha era dona de personalidade forte. Se ela dissesse não, inútil insistir. Era não e fim de papo. Não era mau humorada, mas nem tagarela…
Quando lhe perguntávamos quantos anos ela tinha, repetia algo que nos deixava curiosos: “três taquaras”. À época diziam que a “taquara” era o tempo que demorava para ocorrer a brotação de taquaras – plantas que os indígenas usam para fazer artesanato, balaios e peneiras. E a brotação da taquara – descobri quando li que indígenas contavam a idade pela sua brotação – ocorria a cada 25 anos. A fisionomia e o jeito de Dona Benta não escondiam seu tempo de vida: Estava bem velhinha, e minha mãe na verdade gostava de ajudá-la sem se importar com o “trabalho” que ela se oferecia para fazer em troca de comida e roupa – que sempre ganhava. Muitas vezes vi Dona Alice contar e se divertir com o “serviço” da Bentinha, escondido dela…. Não consigo chamar de mal feito, porque ela fazia com a maior boa vontade. Mas, digamos, se realmente quisesse o pátio bem limpo, Dona Alice precisava de outra ajudante, ou algum filho, para varrer de novo! Mas que Dona Benta não visse outra pessoa com sua “bassoura”, e nem fazendo o seu serviço!
Se ela visse, ou notasse a diferença na varrição ficava de mau humor e se mandava! Ia embora na hora, sem ganhar nada, nem pedir qualquer ajuda e nem dizer adeus! Sumia por uma semana ou mais! Quando acontecia isso, minha mãe já sabia: Foi lá na Comadre Andrezila (vizinha de três casa adiante) se queixar que eu reclamei do serviço dela! E era batata! Volta e meia Bentinha brigava, também, na vizinha, e vinha “fazer a caveira” da Comadre Andrezila para Dona Alice. As duas se divertiam com isso. Dona Benta tinha metro e meio de figura muito simpática, era uma criança grande, e uma amiga querida da família. Mas tinha uma péssima filha – que ninguém nunca soube onde morava ou vivia. A filha volta e meia aparecia, e o guarda-roupa da Benta, assim como panelas e utensílios que ganhava, sumiam de seu ranchinho. E todos que a ajudavam sabiam: era preciso repor o “enxoval” da Benta, providência tomada periodicamente, com visitas ao seu barraco!
E naquele 15 de agosto de 65, ao Irmão Alóis ver que a neve caía com intensidade, ele mandou a gente abrir a janela para apreciar mais aquele “inédito fenômeno da natureza”, que inclusive tinha muito a ver com a aula de ciências! E, concluiu que a neve iria branquear a cidade! Daí, para alegria geral dispensou a turma: estávamos liberados para apreciar a neve, com a ordem de ir, direto, para casa! Descemos o morro na maior farra, fazendo bolas de neve e “guerra de bolas de neve! ”. Foi muito legal, porque o barato ainda nem existia: Uma bola de neve tem o peso de uma pedra e dá a impressão que se a gente jogar aquilo, causaremos grandes estragos. Mas provoca nem arranhão. Descoberta inesquecível.
E por saírmos mais cedo, em vez de ir direto para casa, comemoramos em várias aglomerações em torno de bonecos, feitos em frente às casas! Eu fui para a Praça Tiradentes, onde moradores da redondeza (Famílias do Dr. Celso Rauen, Barato, Jaime Pieper, Zílio, Basílio de Almeida…) já tinham feito um boneco de neve maior que nós, com gorro e cachecol vermelho! E foi mais uma guerra de neve! A camada chegou a ter uns dez centímetros, continuou caindo até o meio dia e, literalmente, ao pé da letra, branqueou tudo em Xanxerê. De um jeito que nunca mais vi!
Com aquele frio, logo após o almoço Dona Alice lembrou da Dona Benta e lá fomos nós, a bordo do reluzente e verde Chevrolet Bel Air, ano 53, uma belezura – o primeiro carro que “seo Romeu” comprou – levar comida, cobertores e roupas para Bentinha. Seu rancho ficava no morro, atrás do campo do Tabajara, em área totalmente desabitada, antes de ser Bairro Bortolon…! Ela estava entocada no seu minúsculo rancho de costaneiras, tapado de fumaça, como sempre! E abriu seu largo sorriso quando nos viu…. Bentinha continuou “ajudando Sealícia” por anos, até que um dia sumiu – e isso costumava acontecer, volta e meia…. Só que daquela vez… nunca mais voltou! E não se descobriu se foi viver com a filha – o mais provável – nem o que aconteceu com ela! Restou uma foto da Bentinha sentadinha na sua cadeira, sorrindo, esperando seu almoço! E muita saudade!
Um bom final de semana a todos (as)!